Entidades, ativistas e advogados denunciam mortes de animais
Os jumentos estão sendo dizimados para atender à demanda de um produto chamado ejiao, extraído do colágeno de sua pele que, de acordo com a medicina tradicional chinesa, possui propriedades medicinais que auxiliam na circulação sanguínea, no tratamento de anemia e no tratamento de doenças reprodutivas, sem que haja uma comprovação científica mais ampla quanto a estes benefícios, como alerta a bióloga e representante da The Donkey Sanctuary na América Latina, Patricia Tatemoto
“As evidências científicas não são robustas sobre a eficácia deste produto. Para que se tenha uma ideia, no mundo todo seriam necessárias 4.8 milhões de peles de jumentos por ano para abastecer esta demanda. Então é impraticável. Nós não temos esta quantidade de animais no mundo. E a produção regulamentada em fazendas é custo-proibitiva, por isso a atividade ocorre de modo extrativista”, denuncia.
Este comércio internacional, vale ressaltar, lucrativo para um seleto grupo de empresários chineses, tem implicado um modus operandi de captura ou compra, transporte irregular, confinamento e abate dos jumentos para a exportação de seu couro que guarda a substância do ejiao.
Frise-se que o ejiao pode ser cultivado em laboratório, sem morte dos animais e gerando muitos empregos voltados à fabricação industrial e em série do ejiao.
Contudo, nos países por onde já passou – e, diga-se de passagem, foram expulsos pelas autoridades locais e entidades de proteção da espécie, como 19 países da África e alguns da América Latina – há inúmeros registros apontando animais privados de água, alimento e cuidados veterinários por parte das empresas que exploram a atividade, além da captura e da manipulação de jumentos doentes e de filhotes e fêmeas prenhes que são abatidos de forma cruel e irregular.
No Brasil a história não parece ser diferente. Por esta razão, os especialistas estão chamando a atenção para o fato de a população de jumentos de nosso país estar claramente declinando. Em 2011, essa população era de 974.688 animais (IBGE, 2011). Em 2017, os números caíram para 376.874 (IBGE, 2017), evidenciando uma queda de 38% em seis anos. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), de 2008 a 2018 a redução foi de 28% no Brasil.
Embora a queda seja diferente entre as duas fontes oficiais, a redução da população de jumentos no Brasil é incontroversa. De acordo com dados oficiais do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, apenas em abatedouros sob o Serviço de Inspeção Federal no estado da Bahia 78.964 jumentos foram abatidos entre fevereiro de 2021 e junho de 2022.
É importante ressaltar que esses números não abrangem as mortes que ocorrem durante o transporte nem aquelas causadas por doenças, que somam em torno de 20% adicionais aos dados de abate. Em 2018, o Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Bahia previu que os jumentos seriam extintos em até 4 anos. Esse declínio populacional tem decorrido, portanto, da natureza extrativista da atividade do ejiao.
Além do severo comprometimento do bem-estar animal – direito garantido a todas as espécies pela nossa Constituição Federal – e do risco de extinção, outro fator importante refere-se à biossegurança, uma vez que inexiste rastreabilidade nessa atividade extrativista. O mormo, por exemplo, zoonose que acomete equídeos, possui letalidade de 95% para humanos e foi identificada em jumentos envolvidos na prática devido à ausência de rastreabilidade dos animais capturados.
Os especialistas também explicam que a ausência de estudos científicos e informações técnicas suficientes e específicas para os jumentos em relação a transporte, manejo e abate faz com que esta atividade ocorra sem regulamentação apropriada para a espécie. Ou seja, a forma como esta prática ocorre é indefensável, sobretudo em um país com inegável vocação agrícola como o Brasil.
Os jumentos são animais resilientes que participaram ativamente na construção do país, sobretudo no Nordeste. Importantes artistas brasileiros como Luiz Gonzaga, Chico Buarque e Cândido Portinari já reconheceram estes animais em suas obras como pertencentes ao patrimônio cultural imaterial nacional.
Em 2018, a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, Movimento que desde 2016 luta contra o abate de jumentos no Brasil, ajuizou ação civil pública na Justiça Federal de Salvador e conseguiu a suspensão liminar dos abates. Em 2019, essa liminar foi suspensa por decisão monocrática e infundada do então vice-presidente do Tribunal Regional Federal da Primeira Região, Kassio Nunes Marques, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal. Após inúmeros recursos, somente em 2022 a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos conseguiu restabelecer a liminar, que, contudo, está sendo descumprida pelos abatedouros e, pior, pelas autoridades brasileiras (MAPA e ADAB). Segundo o coordenador jurídico da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, Yuri Fernandes Lima, “a decisão da Corte Especial do TRF-1 está sendo descumprida e nós estamos tomando todas as medidas possíveis para que referida decisão seja cumprida, suspendendo-se novamente o abate dos jumentos, até que a nossa ação civil pública seja julgada.”
Denúncias – Além dessas ações e recursos judiciais, inúmeras denúncias e uma forte movimentação pelo Brasil, a Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, composta por importantes instituições como Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, Princípio Animal, União Defensora dos Animais (Bicho Feliz), Rede de Mobilização Pela Causa Animal – REMCA, entre outras; e The Donkey Sanctuary, conseguiram a realização de audiências públicas no Congresso Nacional em 2019 e na Assembleia Legislativa da Bahia em 2021.
Segundo Fernando Schell Pereira, diretor da ONG Princípio Animal, “É pertinente afirmar que esses animais configuram uma nova moralidade de preceitos éticos de valores inerentes a suas vidas. Inegável refutar o reconhecimento de direitos aos quais estão firmadas as garantias de bem-estar e liberdade de sua espécie. Assegurar a vida dos jumentos é também ressaltar os valores da dignidade humana frente a senciência da qual igualmente fazemos parte neste mundo”.
“O abate desses animais é cruel e absurdo. É um crime que irá extinguir os jumentos. Eles sofrem durante o transporte, além de serem acondicionados em locais com pouca água e comida. Estimamos que 20% morram pelos maus-tratos a caminho dos matadouros”, alerta a advogada e coordenadora da Frente Nacional de Defesa dos Jumentos, Gislane Junqueira Brandão.
“Mesmo tendo uma decisão quase que por unanimidade no Tribunal de Justiça da Bahia, eles não a cumprem. Anos atrás, ficamos como tutores de centenas desses animais e verificamos a baixa qualidade sanitária deles, com muitas doenças, problemas graves de desenvolvimento, desnutrição e zoonoses que oferecem riscos aos seres humanos. A carne também é aproveitada, mas não existe uma cadeia produtiva e o que vemos é que os animais que estão indo para o abate vieram de grande sofrimento, privação alimentar e abandono”, afirma a médica veterinária e diretora técnica do Fórum Animal, Vania Plaza Nunes.
“Essa violência contra esses animais é uma violência contra a vida, contra a nossa Constituição Federal, contra os princípios básicos de humanidade e dignidade que atinge todos os seres, inclusive os humanos. Não há mais tempo, os jumentos estão sendo extintos, uma grande ingratidão e profunda injustiça a eles que ajudaram a construir a história do Brasil. É preciso parar o abate dos jumentos já!” Alerta Joice Heloisa de Medeiros, Diretora da União Defensora dos Animais Bicho Feliz.
Por estas razões, a quinta manifestação nacional foi convocada pelas instituições e seus apoiadores para denunciar mais uma vez a ocorrência do cruel abate de jumentos no Brasil e esta desobediência à Justiça brasileira que determinou a interrupção do abate cruel e desenfreado dos jumentos, havendo ainda uma articulação para que seja instaurada uma CPI de investigação da prática, que envolve o abate destes animais e a exportação de sua pele no Brasil e para aprovação do projeto de lei contra o abate.
(Com fotos da EBC)